Tornar-se cidadão envolve usufruir de uma vida digna, ter direitos civis e liberdade para participar no destino da sociedade. Se a cidadania é o destino, as políticas públicas representam o alicerce da ponte que viabiliza essa passagem, e o transporte público coletivo, considerado um serviço essencial e um direito fundamental, um dos pilares.
Quando os indivíduos que ocupam as cidades estão constantemente em movimento para se conectar ao trabalho ou a equipamentos de saúde, educação e lazer, cresce a demanda por integração, exigindo do poder público uma ampla compreensão do conjunto urbano. Por esse motivo, foi criado em Sergipe, em 1997, o Sistema de Transporte Metropolitano (STM), visando organizar o deslocamento entre as cidades de Aracaju, Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão.
O sistema conta hoje com um aparato de 466 veículos, 101 linhas e 8 terminais de integração, responsáveis pelo transporte de, em média, 142.600 passageiros por dia sob a tarifa única de R$ 4,50.
São pessoas com aspirações individuais que embarcam em um meio coletivo em busca de serviços e necessidades que ultrapassam fronteiras municipais e, além disso, levantam um questionamento: as expressões urbanas estão conectadas com o transporte público?
Faces da cidadania e percalços do dia a dia
Filho da Barra dos Coqueiros, Daniel Gonzaga soube logo cedo que teria de enfrentar uma travessia. Aos 11 anos, sua rotina já incluía se deslocar todos os dias para a capital, onde estudava. Aos 25, percebe as marcas do tempo na cidade para além dos empreendimentos residenciais.
“Eu comecei a pegar o transporte público em 2010, quando comecei a estudar em Aracaju, e só tinha duas linhas de ônibus que circulavam na Barra dos Coqueiros. Era um pouco difícil, pois esses ônibus não cumpriam horários e tinham atrasos, aí geralmente as pessoas pegavam lotação e deixavam o ônibus de lado. Hoje em dia a situação está diferente com as quatro linhas que existem, mas acho que tem muita gente que precisa se locomover”, afirma.
Designer gráfico, Daniel ainda utiliza o tranporte público coletivo para chegar em Aracaju
A percepção relatada por Daniel se fundamenta em números, já que o crescimento demográfico na Barra foi o mais expressivo entre todos os municípios de Sergipe, com um aumento de 66% entre 2010 e 2022, o equivalente a mais 16.535 habitantes, segundo o último Censo.
Segundo Shirley Barboza, arquiteta e urbanista, especialista em Engenharia de Trânsito e ex-diretora de Transportes da SMTT de Aracaju, esse crescimento também foi verificado nas demais cidades da Grande Aracaju.
“A cidade de Aracaju e sua Região Metropolitana, de acordo com o IBGE, são consideradas como cidades de médio porte, que são as com maiores taxas de urbanização nos últimos anos. Portanto, à medida que crescem demograficamente, crescem também em atividades econômicas. Isso demanda uma crescente necessidade de deslocamento para a manutenção das relações de trabalho, comércio e lazer”, aponta.
Conforme a Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (SMTT) da Barra dos Coqueiros, o sistema de transporte público buscou acompanhar esse desenvolvimento. A frota de ônibus que atende a cidade foi ampliada para circular em quatro linhas, e está em curso a instalação de cerca de 250 abrigos de ônibus.
A expectativa do órgão é que com a consolidação do Consórcio Metropolitano, a criação de uma entidade pública que definirá o formato do sistema de transporte coletivo e o iminente lançamento de uma licitação, o município passe a ter autonomia para gerenciar o serviço, buscando alternativas para contemplar áreas hoje não tangenciadas e expandir ainda mais a oferta.
Nesse ínterim, há relatos de usuários do transporte público que ainda não experimentam a plenitude da integração que o sistema foi pensado para atingir.
A fonoaudióloga Bianca Menezes é baiana, mas foi abraçada por três cidades de Sergipe. Hoje ela é moradora da Barra dos Coqueiros, mas durante a graduação também viveu com a irmã e mais duas amigas em Aracaju e São Cristóvão. A capital é onde faz mestrado, estágio e também percebe mudanças no sistema de transporte.
“Para a minha irmã, quando ela está em Aracaju, como ela pega um ônibus que passa pelo corredor que tem na Hermes Fontes, agora já vai muito mais rápido. Lá ela sabe o horário certo, mas daqui para lá e de lá para cá, nunca sabe o horário, todo mundo fica assim porque não sabe quando vai passar outro”, afirma.
Para Bianca Menezes, uma das principais dificuldades é enfrentar a superlotação dos ônibus
O corredor de mobilidade ao qual Bianca se refere é um dos quatro que entraram em funcionamento na capital sergipana no ano passado para proporcionar maior fluidez no trânsito, já que, com as faixas exclusivas, há a perspectiva de redução do tempo de deslocamento em cerca de 20%.
O gargalo, segundo Bianca, está em conseguir chegar até a capital, uma vez que enfrenta a superlotação dos veículos que saem da Barra dos Coqueiros.
“Várias vezes eu já deixei de pegar o ônibus por causa disso. A gente tem os horários deles, mas não dá para você se programar, porque você não sabe se você vai conseguir entrar no ônibus. Ou seja, a gente às vezes consegue entrar aqui e vai, mas na hora de voltar a gente não sabe que horas que vai conseguir chegar, isso é comum. Quando tem [ônibus] em maior quantidade, não fica essa superlotação, né?”, conta Bianca.
Ainda segundo Shirley Barboza, em situações como essa, o tempo conta muito e os veículos alternativos, principalmente os individuais, aparecem como uma via paralela ao transporte público. Por isso, em sua visão, um Plano de Mobilidade e um Plano de Desenvolvimento Integrado (PDUI) poderiam integrar a gestão do sistema de transporte para prover soluções articuladas para a Grande Aracaju.
“Sob a ótica do desenvolvimento sustentável, o grande marco organizador vem das políticas públicas voltadas ao incentivo do uso do transporte coletivo e o gradativo desestímulo do uso do transporte individual. Portanto, a estruturação desses dois sistemas de transporte é de fundamental importância para o crescimento saudável das cidades de Aracaju e Região Metropolitana”, explica.
Ocupação do solo x transporte público
As rotinas de Daniel e Bianca corroboram a visão de especialistas sobre carências do sistema de transporte público da Grande Aracaju. Segundo o Doutor em Arquitetura e Urbanismo e pesquisador do Núcleo Aracaju do Observatório das Metrópoles, César Matos, a importância de um sistema integrado vem da demanda por deslocamento gerada pela Região Metropolitana, onde as atividades exercidas em um município suprem a demanda do outro.
Para o pesquisador, é possível identificar que, nos últimos anos, algumas expressões urbanas surgiram sem que houvesse uma correspondência direta com políticas de transporte público.
“Quando se tem uma política de ocupação do solo que não é pensada junto com o sistema de transporte, a cidade se expande, ela ocupa áreas antes desabitadas, criando demanda para o sistema de transporte. Muitas vezes é melhor adensar as áreas centrais, por exemplo, as áreas já existentes para habitação, serviço e comércio do que construir novas áreas. As políticas de ocupação do solo deveriam estar atreladas às políticas de transporte”, explica.
Essa experiência de viver “nas franjas” da Grande Aracaju, Romenildo Santos conhece bem. Morador do Loteamento Guajará, em Nossa Senhora do Socorro, ele entende como a infraestrutura e as condições de saneamento são fundamentais para o pleno funcionamento do transporte público.
“Em dias normais, pego o ônibus na frente da minha casa, pois moro em frente ao último ponto de ônibus da minha comunidade. Porém, em dias de chuva, tenho que caminhar mais de 1km, pois os ônibus não sobem devido à dificuldade das ruas, que são sem infraestrutura, com muita lama e buracos enormes”, afirma.
Ainda segundo César Matos, essa falta de coerência a ocupação do solo e o sistema de transporte público acaba gerando custos adicionais, uma vez que relega o poder público a criar novos mecanismos para garantir o acesso da população que vive nesses locais ao transporte.
“A gente deveria pensar em cidades que podem aumentar sua população, mas com uma política de ocupação solo coerente com o sistema de transporte. Acaba ficando mais caro quando você constrói conjuntos habitacionais ou condomínios fechados afastados das áreas já consolidadas. Você vai ter que levar linhas de ônibus, você vai ter que levar novos veículos, vai ter um custo impraticável, acaba sobrecarregando o sistema de transporte”, diz ele.
Integrar é verbo de ação
Dados da última Pesquisa Mobilidade da População Urbana, de 2017, produzida pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) delineiam um perfil médio do usuário do transporte público coletivo no país: os passageiros estão enquadrados na classe econômica C, possuem ensino médio completo ou superior incompleto e recebem até dois salários mínimos por mês.
Para o diretor-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, essa realidade reforça ainda mais a necessidade de que os deslocamentos ocorram de forma mais organizada, racional e com maior fluidez nas vias públicas.
“Ao ser adotado um mecanismo de integração no transporte público, estamos falando de um tempo de deslocamento menor e uma tarifa mais baixa para a população, além de mais conforto, segurança e tranquilidade durante todo o trajeto. Esses ganhos tendem a ter reflexos positivos na produtividade do trabalhador, mais tempo livre para o lazer e menor custo de vida para o passageiro”, explica.
Diante do perfil nacional e da realidade da Região Metropolitana, o pesquisador César Matos propõe um mecanismo para auxiliar a garantir a integração entre as cidades que dela fazem parte. Em detrimento da integração restrita aos terminais, ele propõe o adicional de uma integração temporal, com suporte nas condições técnicas que o sistema já dispõe, como a bilhetagem eletrônica.
“Uma forma muito melhor e eficiente de integração entre as linhas do sistema é através de uma integração temporal. Nós já temos o cartão de passagem, então você teria um bilhete único e um tempo de uma a duas horas para poder pegar outra linha em qualquer lugar da cidade sem pagar outra passagem, e não necessariamente ir para um terminal de ônibus”, afirma.
Perspectivas integradas em prol da cidadania
Quando se fala do transporte público coletivo, integrar envolve um contínuo de ações frente aos diversos desafios relacionados ao desenvolvimento das cidades e ao crescimento populacional. Para o presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros dos Estados de Alagoas e Sergipe (Fetralse), Alberto Almeida, por conta disso, uma nova dinâmica de distribuição dos passageiros deve ser trazida a partir da concretização da licitação do transporte da Grande Aracaju.
“O processo licitatório traz a obrigação de um estudo de rede, que é a avaliação de distribuição das linhas e a necessidade de ajustes nela, porque ela foi feita lá atrás em cima de um cenário, e esse cenário vai mudando aos poucos, porque a cidade não se mexe com muita rapidez, é preciso que a gente faça os ajustes que são feitos periodicamente. A licitação dá a oportunidade de você fazer um estudo geral dessa malha. É preciso que se faça, e está sendo feito, a ANTP está fazendo um trabalho de avaliação da rede”, explica.
De acordo com Alberto, essas intervenções são necessárias mesmo diante do caráter centralizador e de intersecção dos terminais. Ele também aponta possíveis mudanças que podem ser verificadas a partir da licitação.
“O que de vir com a licitação ou pós-licitação é a integração temporal, onde não vai mais existir a necessidade de você estar em um ambiente físico para fazer a integração, você vai fazer através de um cartão e vai poder descer em qualquer local. Aí nós vamos ter uma mudança do perfil de deslocamento. É preciso que se faça um trabalho, primeiro a reavaliação de rede, que está sendo feita na licitação, e a partir daí, se comece a fazer as integrações temporais, que é o próximo passo”, completou.
Nesse sentido, uma linha, um ônibus e 40 assentos parecem ser agentes efetivos para diminuir desigualdades. Os condutores dessa jornada, sejam motoristas ou detentores do poder, carregam a responsabilidade de lidar com vidas e, acima de tudo, de garantir que esses indivíduos cheios de vida consigam chegar ao destino final: o exercício pleno da cidadania.